
Nós estamos vivendo em meio ao insano e ao inusitado.
Estamos vivendo tempos únicos. Como resultado do coronavírus e suas insistentes investidas contra a vida, estamos curiosamente vivendo dias de não carnaval.
Fato inusitado, temos 2 papas. Fomos atingidos por um raro evento na história da humanidade que é essa pandemia causada por um vírus que tem desafiado cientistas, médicos e autoridades em saúde.
Além disso, a forma como as notícias e as informações chegam à nós está se transformando profundamente. Realmente são insanos esses nossos dias.
Tenho por costume revisar diariamente as publicações que fizemos em anos anteriores para verificar se existe algo que possa ser republicado em função de alguma data comemorativa ou algo que seja relevante para a época.
Lembro que em 2019, durante as pausas que a comemoração de Momo proporcionaram, aproveitei para dar uma arrumada geral nos livros, bem como nas referências anotadas em papeis espalhados.
E, como digo, precisamos sempre respeitar as orientações que os recados da “santa sincronicidade” nos traz.
Enquanto olhava tudo, no meio de diversos papeis e recortes de jornal (sim, era costume recortar do jornal algum artigo que chamasse a atenção), vi que lá estava um antigo e amarelado pedaço de jornal com uma crônica.
Era de Moacyr Scliar e remetia a um livro que ele escreveu chamado “A face oculta – inusitadas e reveladoras histórias da medicina”, (Porto Alegre, Artes e Ofícios, 2001). Esse livro reúne várias colunas por ele escritas no jornal Zero Hora de Porto Alegre.
Carnaval, os blocos se esparramando por uma cidade vencida em seu pudor, o samba apresentando suas teses nos desfiles das escolas… E, enquanto isso, lá estava uma divertida e lúcida explicação sobre o funcionamento da psique humana na visão do taciturno Dr Freud, em meio aos folguedos momescos.
Os três moradores da nossa casa mental.
“Segundo Freud, que não era construtor (mas que em algum momento deve ter pensado em fazer uma incorporação a preço de custo para escapar das agruras da psicanálise), a nossa mente é como uma casa em que vivem três habitantes.
No térreo mora um sujeito simples e meio atocaiado chamado Ego. Ele não é propriamente o dono da casa, mas cabe-lhe pagar a luz, a água, o IPTU, além de varrer o chão, lavar a roupa e cozinhar. Estas tarefas fazendo parte da vida cotidiana, Ego até não se queixaria. O pior é ter de conviver com os outros dois moradores.
No andar superior, decorado em estilo austero, com estátuas de grandes vultos da humanidade e prateleiras cheias de livros sobre leis e moral, vive um irascível senhor chamado Superego. Aposentado – aos pregadores de moral não resta muito a fazer em nosso mundo -, Superego dedica todos os seus esforços a uma única causa: controlar o pobre Ego.
Quando Ego se lembra de alguma piada boa e ri, ou quando Ego se atreve a cantar um sambinha, Superego bate no chão com o cetro que carrega sempre exigindo silêncio. Se Ego resolve trazer para casa uma namorada ou mesmo uns amigos, Superego, de sua janela, adverte: não quer festinhas no domicílio.
No porão, sujíssimo, mora o terceiro habitante da casa, um troglodita conhecido como Id. O Id não tem modos, não tem cultura e na verdade mal sabe falar. Em matéria de sexo, porém, tem um apetite invejável. Superego, que detesta estas coisas, exige que Ego mantenha a inconveniente criatura sempre presa. E é o que acontece durante todo o ano.
Chegou a hora de ir brincar no Carnaval.
No Carnaval, porém Id se solta. Arromba a porta do porão, salta para fora e vai para a folia, arrastando consigo o perplexo Ego que, num primeiro momento, resiste, mas depois acaba aderindo. E aí são três dias de samba, bebida, mulheres.
Quando volta para casa, na quarta-feira, a primeira pessoa que Ego vê é Superego, olhando-o fixo da janela no andar superior.
Ele não precisa dizer nada, Ego sabe que errou. Humilde, enfia-se em casa, abre a porta do porão para que o saciado Id retorne a seu reduto, e aí começa a penitência que durará exatamente um ano.
Todos sonham seus sonhos.
De vez em quando Ego tem um sonho. Ele sonha que os três fazem parte de um mesmo bloco carnavalesco, e que, juntos, se divertem a valer. O Superego é inclusive o folião mais animado.
Mas isto é, naturalmente, sonho. Parafraseando um provérbio judaico, Carnaval no sonho não é Carnaval é só sonho. Que se junta a todos os sonhos frustrados de nossa época. Graças a eles, muitas casas foram construídas, e muitos edifícios foram incorporados.”
Moacyr Scliar
Um carnaval sem precedentes.
Em 2020 a Organização Mundial da Saúde se curvou à realidade. E, então, anunciou que um novo vírus, proveniente de uma mutação ainda desconhecida, impunha a necessidade de tomar providências rígidas.
E, assim, o mundo foi fechado na tentativa de estancar sofrimento e mortes.
Sem nenhum riso e muito menos alegria, milhares de internados lutam pelo ar da vida que tem dificuldade em entrar nos pulmões. E a colombina de máscara protege-se do perigoso vilão que esvaziou as ruas e calou os salões.
As festas cada vez mais extravagantes e insanas que lotavam as ruas, os clubes e os bares estavam excitando ao máximo os sentidos. Até que a falta desses eventos trouxesse para fora o troglodita sem modos que se esgueira do pudor, imiscuindo-se sensualmente, libertando o débil ego dos laços tenazes que fazem a mediocridade ser o normal.
E agora?
Esse “não carnaval” reforça as trancas do obscuro porão. Assim, cada vez mais as correntes represarão os reprimidos desejos que enlaçam o id ao ego, sufocando a incontrolável rebeldia, aumentando a repressão exercida pelo Superego.
Não temos como prever as consequências da supressão irremediável da folia. Poderá o Superego manter o controle da casa dividida?
Talvez o ego encontre uma maior dificuldade para mediar as diferentes demandas entre o casto hipócrita das resoluções sociais e os insanos instintos que provocam e impelem às satisfações carnais.
Ah, o sonho de viver em paz, com alegria e espontaneidade, reconciliando-se da fragmentação com seus dois vizinhos e podendo, assim, fazer a interação de todas as suas estruturas!
É assim que surgirão os novos seres, os Seres Integrais, os habitantes de um mundo de regeneração.
José Batista de Carvalho