
A visão da humanidade, pelos olhos de um dos muitos Fernandos.
Nas atitudes cotidianas, o desassossego de Fernando Pessoa – pelos olhos de Bernardo Soares – vê os que passam pela vida, talvez muito ao acaso, quem sabe numa despreocupação excessiva, num descaso letárgico, com um descuido da consciência que lhe toca as fibras íntimas com ternura.
Com compaixão percebe as “eternas crianças do Destino”, que seguem pela vida numa ingênua inconsciência da própria consciência. Leia a seguir.
As costas do homem que caminhava à frente.
“Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. (…) Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme.
Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe.
Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos, por tudo.
É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres-diabos homens, o pobre-diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
(…) E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo.
(…) Passam com toda as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência.”
Bernardo Soares
“Livro do Desassossego“, Fernando Pessoa
Referências
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888 e lá faleceu em 1935, aos 47 anos. Um dos maiores nomes da literatura portuguesa, sua particularidade mais marcante foi o fato de ter escrito usando diversos nomes – os heterônimos, entre os quais Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
Bernardo Soares é um tipo particular dentre os heterônimos do poeta e escritor português Fernando Pessoa. É considerado um semi-heterônimo porque, como seu próprio criador explica “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.”
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