
Percebemos a felicidade de ponta-cabeça.
Estava de novo eu pensando sobre a felicidade. O interesse que temos em matérias sobre felicidade não é pelo prazer de discutir o assunto, mas porque queremos encontrar a forma de nos sentirmos felizes.
E, para minha felicidade, vi um texto de Alan Watts (*) que me fascinou. É assim:
“Encarada de forma tão confusa e aparentemente misteriosa, a questão da felicidade está longe da simplicidade.
É extremamente complexa porque, de fato, é incrivelmente simples; sua solução está tão próxima de nós e é tão óbvia, que nós temos a maior dificuldade em vê-la; devemos complicá-la a fim de focalizá-la e sermos capazes de discuti-la.
Isso pode parecer um terrível paradoxo, mas diz-se que um paradoxo é apenas uma verdade de ponta-cabeça para chamar a atenção. Pois há certas verdades que têm de estar de ponta-cabeça para que possam ser notadas; geralmente elas são tão simples, que deixamos de percebê-las.”
Bem, de fato, não é tão simples de entender. Vamos tentar simplificar: nós tornamos a felicidade algo muito complicado e isso nos leva a prestar muita atenção nela.
Dessa forma, nós atestamos a sua existência, sabemos que ela existe, e esse é o ponto inicial para desvendar qualquer coisa que seja: reconhecer a possibilidade de sua existência, sua veracidade. A partir desse reconhecimento, vamos nos interessar em descobrir seu mistério e esclarecer tudo que lhe diz respeito.
Neste caso, partimos do pressuposto que a felicidade existe e ela é encontrada em vários lugares, próximos ou distantes quando, na verdade, está sempre muito mais perto que imaginamos.
Vemos a luz das estrelas distantes, mas não a luz que brilha em nosso ser.
Vamos seguir o raciocínio de Alan Watts para tentar entender melhor o que ele quer nos dizer:
“Nossas próprias faces são um exemplo disso. Nada poderia ser mais óbvio e auto-evidente do que a própria face do homem, mas muito estranhamente ele não pode vê-la de forma alguma, a menos que introduza o artifício de um espelho, que lhe apresenta a imagem invertida.
A imagem que ele vê é a sua face, todavia, não é sua face; e isso é, em parte, um paradoxo. E eis aqui a razão de toda a nossa incerteza e ambiguidade a respeito das coisas do espírito, porque, se nossos olhos não podem se ver, tanto menos aquilo que se vê através dos olhos poderá ver a si mesmo.”
É de fato um paradoxo conseguirmos ver o brilho das estrelas distantes, pendentes luzidios no céu distante, mas não conseguirmos ver nosso brilho interior. É lá que mora a felicidade, mas que muitas vezes não conseguimos sentir, atolados em nossos problemas cotidianos de sobrevivência neste planeta material que tolda nossa sensibilidade.
Como descomplicar tudo?
O que fazer, então? Dê-nos uma resposta, por favor, Alan Watts:
“Então, nós temos que encontrar algum modo de superar a dificuldade, algum meio de compreender a coisa mais óbvia do mundo, uma coisa que é geralmente negligenciada, porque nossos pensamentos e sentimentos estão sendo conduzidos por canais muito mais complicados.
Para vê-la (a felicidade), eles têm que se rebaixar a um nível de humildade, não temeroso e prostrado, senão com a mais direta e infantil abertura de espírito – “pois Ele depôs o poderoso de seu trono e exaltou o humilde e o sereno”.
Para compreender simplicidade tão extraordinária, deve-se apenas abrir os olhos do espírito e ver; não há segredo nisso, porque ela está diante de nós, à luz do dia, tão grande como a vida. Nas palavras do sábio chinês Tao-wu, “se você a quer ver, olhe-a diretamente, mas se você tentar nela pensar, se desvanecerá”.
Portanto, quando se diz que aqueles que buscam a felicidade nunca a encontram, talvez seja mais adequado dizer que não há necessidade de procurá-la. Como nossos próprios olhos, ela está nos acompanhando o tempo todo; mas quando nos voltamos para tentar vê-la, nós nos iludimos.”
A felicidade sem restrições ou condições.
Talvez agora você esteja se perguntando, afinal de contas, como se sentir feliz “se ainda não consegui casar, se meu emprego é uma droga, se não consigo comprar um apartamento, se vivo tomando remédios e minha saúde não melhora?”
Acredito que isso é o que Alan Watts cita como “complicar a felicidade”, é impor restrições e condições para ser feliz. Nós temos a ideia de que a felicidade precisa “acontecer” quando, na verdade se trata mais de “perceber” a felicidade.
Se acreditarmos que só seremos felizes quando tudo o que queremos se tornar realidade, não seremos felizes nunca, porque sempre queremos mais alguma coisa. O querer mais e melhor faz parte do nosso impulso criativo e evolutivo, mas não pode ser um obstáculo ao nosso sentimento de estar bem.
Então, se a felicidade não está nas aquisições externas, onde está? Exatamente onde Alan Watts disse: muito perto, tão perto que nem conseguimos ver. A sua sede central está em nosso interior, o lugar de nosso ser que não pode ser visto com os olhos, apenas percebido pelos sentidos.
A felicidade de estar em paz.
Cuidar dos reveses, encontrar soluções para os problemas, são ações que você vai ter que tomar de qualquer jeito. Mas procurar as alternativas para resolver as dificuldades da sua vida com o espírito sombrio e a energia pesarosa não vai trazer respostas melhores, nem mais rápidas. Ao contrário, as soluções serão mais difíceis e lentas.
Aceitar a felicidade não significa ficar rindo quando a situação não está boa, mas é não se deixar abater nem perder a paz. Mantendo a direção de seus pensamentos e emoções no caminho de sua essência, energias equivalentes de serenidade e positivismo virão ao seu encontro, ajudando numa melhor solução ou numa aceitação mais tranquila das situações adversas.
Assim você tem a felicidade de estar em paz. Em paz consigo mesmo e com o mundo.
Noemi C. Carvalho
Referência
(*) Trecho do livro “O Significado da Felicidade”, de Alan Watts.
Alan Watts (1915 – 1973) foi um filósofo britânico-americano que interpretou e difundiu a filosofia oriental para um público ocidental. Escreveu mais de 25 livros e artigos sobre temas de religiões orientais e ocidentais, explorando e aprofundando temas sobre a consciência humana.
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