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Uma rosa perdida em nosso deserto

– Uma música.

– Desert Rose, do Sting.

– Por que essa?

– Eu gosto dela, do ritmo da batida, é gostosa.

– O que ela te lembra, o que você sente quando escuta?

– Me transporto para o deserto, sinto a aridez me envolvendo, uma secura que se iguala ao meus sentimentos, uma busca pelo frescor de um jardim, imagino a chuva caindo, tocando a areia, mas o que fica é o vazio azul do céu, a miragem de um encontro que se esvai como a areia escorrendo pelas minhas mãos.

– Triste, não? Mas uma coisa me chamou a atenção: em meio à tristeza parece que brota uma esperança, não é mesmo? Que encontro seria esse?

– Não sei ao certo, uma pessoa, uma vocação, a inspiração perdida, a Musa que nunca apareceu, realmente não sei dizer, é uma coisa que sinto, uma impressão que surge e se vai, deixando um pouco de melancolia, saudade de algo que não vivi, não sei se você entende.

– Interessante, fale mais sobre isso.

– Como na música, a misteriosa figura que surge em meio ao fogo do deserto, uma rosa que desvela suas pétalas como véus e espalha seu inebriante perfume envolvendo-me, um sonho, um improvável sonho onde, em meio a toda aridez de meus sentidos e a secura de meus sentimentos, a visão do belo pudesse tocar o impossível chão de meu ser e trazer aromas, beleza e cores onde antes nada brotava.

– Seria alguém do passado ou uma pessoa idealizada?

– É como se fosse um sonho, um daqueles que se acorda assustado, um sonho que se sonha acordado e do qual se desperta com dor, a dor de não ter acontecido, talvez de não passar de um desejo que de tão forte criou a impressão de que foi real, a alma que arde atormentada pelo perfume da rosa que impregna a lembrança, nenhum outro doce perfume jamais atormentou tanto.

– Algo muito forte e vívido, sensações profundas…

– Mas o sonho termina, e a realidade se apresenta ainda mais árida e tenho a impressão que meus pés se afundam na areia como se não mais pudesse ir em frente, como se fosse para ficar preso nesta ilusão, docemente intoxicado por esse meu amor que se esvai no calor do deserto.

– Não tenho dúvida de que você procura por algo: um amor impossível que se perdeu no passado platônico da infância, uma razão para viver ou, quem sabe, uma procura por você, por seu verdadeiro ser, a volta ao éden da criação, uma experiência lembrada de forma difusa que se perde nos limites da imaginação com o onírico, um sentido de inteireza, unicidade. Entende o que estou falando?

– Mais ou menos, como se algo fosse retirado de mim deixando esse buraco, essa ausência que sinto de mim mesmo?

– Na verdade nada foi retirado, apesar da impressão ser essa. Imagine que em algum momento de sua vida algum acontecimento tenha exposto você, talvez na sua infância, talvez a uma experiência de vergonha, e essa experiência te impactou de forma extremamente forte. Após isso ocorrer, em sua mente ficou uma vozinha repetindo o que você ouviu e que te desqualificou, juntamente com a imagem das pessoas te olhando. Bom, o que acontece é que você começa a ter medo e até se envergonhar de você, e evita fazer coisas que possam repetir a experiência desastrosa para os seus sentidos.

– Então, se bem entendi, vou me mudando por medo de ser aquele que passou vergonha?

– Por aí. Você foi procurando incorporar um comportamento que se amoldasse às pessoas com quem convivia, para obter acolhimento e aprovação. E isso faz com que aquilo que você é vá sendo escondido, envolto por máscaras que representam personagens, distanciando você de você mesmo, impondo gostos e comportamentos que, em verdade, não são seus e por isso nunca lhe trazem realização, deixando esse vazio, essa sensação de viver em um espaço inóspito, árido, onde nada parece satisfazer.

– Parece fazer sentido. Mas, se na verdade vivo um personagem, como posso sair dele e ser eu mesmo?

– Este é o grande objetivo de todos: se destituírem de todas as camadas que, ao longo do tempo, foram sendo tecidas em volta de sua essência com o intuito de proteger contra as dores dos confrontos cotidianos. Mas, com o passar do tempo, essas couraças foram se revelando, na verdade, um cárcere, uma grande muralha que imobiliza e prende. E como cada uma dessas camadas foi formada a partir de um evento que causou uma profunda dor emocional, e essa dor está em seu interior, essa muralha prende você junto com o seu algoz.

– Então temos que nos desnudar de todas essas couraças e enfrentar aquilo que as criou?

– Exatamente.

– Mas isso é muito difícil, pois nem mesmo tenho consciência de quantas camadas dessas eu tenho.

– De fato, é o trabalho de uma vida. O trabalho da vida de todos nós. É a forma para encontrarmos quem somos em verdade. É assim que encontramos a nossa verdadeira felicidade, dentro de nós mesmos. É assim que veremos que somos dignos de ter paz, e não precisamos procurar nada fora de nós.

– É, mas parece trabalhoso e difícil.

– Querendo você ou não, isso irá ocorrer, seja por vontade própria ou pelos esforços que terá de despender para enfrentar as consequências de suas imaturas escolhas. Não tem como escapar. Por isso, é melhor iniciar o bom e velho “Conheça-te a ti mesmo” que os gregos antigos indicavam para as pessoas que estavam em dificuldades. Ao se conhecer, se revelará em nós mesmos a figura que tanto procuramos em várias pessoas ao longo de nossa vida: aquele ser que nos completará, aquela criatura que nos fará sentir o amor como nunca antes sentimos, o herói que nos resgatará dos desertos em que nos perdemos.

– Então, vamos lá, já estou sentindo o inebriante perfume desta rosa perdida.

 

José Batista de Carvalho


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Um comentário

  1. Filipa Ramos

    Lindo

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